terça-feira, 14 de maio de 2019

A imagem do interlocutor na escrita

"Todas as vezes que falamos ou escrevemos, construímos, em nosso texto, de maneira explícita ou implícita, uma imagem de nosso interlocutor ou de nosso leitor. Por exemplo, quando nos dirigimos a alguém, dando explicações sobre fatos muito triviais com um tom condescendente, estamos deixando claro que a imagem que temos de nosso interlocutor é de alguém não muito perspicaz, a quem é preciso explicar com paciência as coisas que todos deveriam saber. Nesse caso, a imagem que criamos é implícita. Será explícita, se dissermos claramente o que pensamos dele. 

Num texto escrito, o narrador pode instalar explicitamente um leitor no texto. Ele, muitas vezes, dialoga com esse leitor, que, evidentemente, não se confunde com um leitor de carne e osso. Assim como o narrador é um ser de papel, também esse leitor é um ser de ficção. O narrador cria também uma imagem desse leitor, quando se dirige a ele. Assim como o narrador pode estar ausente do texto, deixando que os fatos se narrem como que por si mesmos, também esse leitor de papel pode não estar explicitado no texto. Mesmo assim haverá uma imagem de um leitor criado no interior dele. 

Observe este texto, extraído de Esaú e Jacó, de Machado de Assis, em que o narrador instaura um leitor no texto e fala com ele. Esse ser ficcional é uma mulher jovem ou que, pelo menos, tem um espírito jovem. O narrador diz-lhe que a velhice é um estado de espírito e deve ela negar-se a abandonar a juventude. (...) 

Não é que ainda dançasse, mas sabia-lhe bem ver dançar os outros, e tinha agora a opinião de que a dança é um prazer dos olhos. Esta opinião é um dos efeitos daquele mau costume de envelhecer. Não pegues tal costume, leitora. Há outros, também ruins, nenhum pior, este é o péssimo. Deixa lá dizerem filósofos que a velhice é um estado útil pela experiência e outras vantagens. Não envelheças, amiga minha, por mais que os anos te convidem a deixar a primavera; quando muito, aceita o estio. O estio é bom, cálido, as noites são breves, é certo, mas as madrugadas não trazem neblina, e o céu aparece logo azul. Assim dançarás sempre. 

Machado de Assis. Esaú e Jacó. 4. ed. São Paulo, Ática, 1993. p. 87". 

Savioli, Francisco Platão & Fiorin, José Luiz Lições de texto : leitura e redação.  1.ed. - São Paulo : Ática, 2011.

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